Há algo de curioso e profundo no Orçamento Geral do Estado (OGE) e sua execução. Desde sempre, a Defesa e Segurança é o sector que mais verbas recebe. O país tem um dos maiores exércitos de África, com mais de 130 mil homens e mulheres nas Forças Armadas Angolanas (FAA), bem como um dos maiores orçamentos para o efeito. E, no entanto, há uma enorme quantidade de grandes unidades militares (brigadas) que não dispõem de quartéis e um elevado número de militares que vivem em construções improvisadas com chapas e adobes, sob condições sub-humanas.
A título de exemplo, o jornal Expansão notou recentemente que, no primeiro semestre de 2022, os quartéis militares e as esquadras policiais já receberam 75 por cento das verbas consignadas pelo OGE, ao passo que a Saúde e a Educação apenas puderam realizar 38 por cento das suas despesas. Para o mesmo ano, dois meses após a aprovação do OGE, o presidente João Lourenço adicionou uma verba de cerca de 200 milhões de dólares para o sector de Defesa, que assim totalizou 950 mil milhões de kwanzas (cerca de mil milhões de dólares).
O Maka Angola tem investigado, desde há vários meses, para onde vai o orçamento atribuído à Defesa. Para já, neste primeiro texto, registamos que, além do pagamento dos salários, parece haver um grande vácuo nas contas militares. Enquanto isso, milhares de soldados são aquartelados em condições sub-humanas, inadmissíveis para o sexto país que mais tem gasto com o exército em África nos últimos cinco anos.
Conforme dados do Estado-Maior-General das Forças Armadas Angolanas (EMGFAA), nove brigadas de infantaria (em seis províncias) e a Escola Inter-Armas de Oficiais (Benguela) nem sequer têm quartéis. A falta de quartéis também se verifica em 12 batalhões e regimentos de Defesa Anti-Áerea da Força Aérea, bem como em duas unidades importantes da Marinha de Guerra. Outras 12 brigadas do Exército, seis da Força Aérea e cinco da Marinha de Guerra apresentam quartéis em péssimas condições, consideradas infra-humanas.
Segundo informação obtida junto do Exército, um quartel de batalhão deve ter três dormitórios, posto médico, cozinha, refeitório e armazém.
A resolução das condições desumanas em que se encontram alojados milhares de soldados tem sido inscrita no Programa de Investimento Público (PIP) desde 2013. De acordo com o mapa sobre “a precariedade das condições de aquartelamento das tropas”, do EMGFAA, das 56 obras previstas no programa, apenas três foram concluídas, mas sem que os pagamentos tivessem sido completados.
No Plano de Desenvolvimento Nacional de 2018-2022, o governo do general João Lourenço definiu um conjunto de acções prioritárias a serem realizadas no mesmo período para o “fortalecimento e valorização das Forças Armadas”. Trata-se, para o que ora interessa, da “construção, a reabilitação, a manutenção e o apetrechamento de infra-estruturas do Sector da Defesa Nacional, designadamente, 15 quartéis, 2 hospitais militares, 1 base aérea, 1 base naval, 2 estabelecimentos sociais, 2 estabelecimentos histórico-culturais, 6 estabelecimentos de ensino, 1 servidão militar (…)”.
A Conta Geral do Estado preliminar de 2021 indica que, neste ano e em 2020, a Defesa Nacional consumiu 12 por cento do total do OGE, numericamente o mesmo que a saúde, e acima dos 11 por cento destinados à educação. Recuando aos anos anteriores do mandato de João Lourenço, quer em 2018 — quando se previu um valor de 3,7 mil milhões de kwanzas para 11 obras de construção —, quer em 2019, “não houve execução no concernente a obras, assim como pagamentos”, segundo relatório oficial.
Rendas milionárias
No entanto, o mesmo Estado-Maior-General das Forças Armadas que denuncia a falta de quartéis aparenta ser pródigo em gastar dinheiro com o arrendamento de uma casa de passagem destinada à sua chefia, que não teve uso oficial.
A 25 de Maio de 2017, o EMGFAA rubricou um contrato de arrendamento de uma residência em Luanda, à Rua Joaquim Rodrigues da Graça, n.º 127, Bairro Azul, pelo valor mensal de quatro milhões de kwanzas, para servir como residência de função do chefe de Estado-Maior-General das FAA (CEMGFAA). Na altura, o proprietário do imóvel, general António dos Santos “Patonho”, exercia a função de presidente do Tribunal Supremo Militar. A sua esposa, Luzia Dias dos Santos, assinou o contrato.
No passado dia 30 de Junho, o EMGFAA, invocando a Lei do Arrendamento Urbano, apresentou a rescisão do contrato. Até à data, as FAA pagaram um total de 244 milhões de kwanzas em rendas, tendo decidido acrescentar a esse valor cerca de 51 milhões de kwanzas para compensação do senhorio, reparação da casa e reposição de mobiliário, conforme documento do EMGFAA datado de 26 de Agosto passado. No total, juntando ainda os três milhões mensais pagos na vigência do anterior contrato, de 2015 a 2017, temos um valor estimado em 72 milhões de kwanzas acrescidos aos 291 milhões. Assim o total gasto com a casa é de 367 milhões.
A referida residência, durante a vigência do contrato, nunca foi habitada por nenhum CEMGFAA. Manteve-se praticamente inabitada, conforme testemunhos recolhidos junto de vários oficiais familiarizados com o processo e no local.
O valor total de 367 milhões de kwanzas gastos pelas FAA com o arrendamento da residência do general António dos Santos “Patonho” ultrapassa o que foi orçamentado para a construção de dois quartéis para as companhias de rádio técnica da Força Aérea Nacional em Cafunfo e no Dundo (Lunda-Norte). É um valor superior ao previsto para a melhoria (320 milhões) do quartel para os fuzileiros navais estacionados na Pedra do Feitiço, no Soyo, cujas condições são descritas como infra-humanas.
Desde 2013, o EMGFAA tem um terreno adquirido na Nova Marginal para a construção da casa de passagem do seu comandante, mas o projecto permanece engavetado até hoje. Já existem quatro residências de função, adquiridas nos condomínios Hauteville e Gold.
Este não é o único caso de um general que fará um negócio particular com as FAA, antes se enquadra num padrão de comportamento a que o Maka Angola está atento. O maior problema nem sequer são as aparentes negociatas em si, mas sim a falta de sensibilidade das altas patentes no que toca a lutar para o bem dos seus soldados junto de quem de direito, quanto mais não fosse pelo perigo que os militares, armados e abandonados ao Deus dará, representam para a sociedade em geral e para as instituições políticas em particular. Num exército, a erosão da confiança na cadeia de comando e simplesmente uma bomba-relógio. De Abril de 2021 a Fevereiro passado, em menos de um ano, o continente africano registou o ressurgimento de golpes de Estado em cinco países africanos, nomeadamente na Guiné-Conacri, no Mali, no Chade, no Sudão e no Burkina-Faso.
Um militar na presidência
O general João Lourenço é, na história do país, o primeiro presidente com um passado de carreira militar, tendo exercido, entre 2015 e 2017, as funções de ministro da Defesa Nacional. Com a sua ascensão, esperava-se dele maior atenção às condições e ao sofrimento dos soldados.
Como é possível, em 20 anos de paz, manterem-se milhares de soldados aquartelados em condições que os dirigentes deste país julgariam impensáveis para os seus animais de estimação?
Nos 20 anos de paz, as FAA têm sido o principal pilar de reconciliação nacional e de estabilidade no país, ultimamente ameaçada pela gritante incompetência política.
A forma errática como o comandante-chefe — o general João Lourenço — define estratégias, prioriza, decide e procura consolidar o seu poder é cada vez mais incompreensível. Como explicar que, com tantos problemas graves que assolam o país, mais uma vez, o presidente decida avançar com a construção de um centro político-administrativo (Bairro dos Ministérios), na Nova Marginal de Luanda, para “a realização de cimeiras ao mais alto nível”? Trata-se do dispêndio de biliões de dólares para uma obra que servirá mais como oferenda aos deuses do mal, pelo desprezo a que vota os angolanos, e para celebração da vaidade e do egocentrismo dos dirigentes.
Tal é o exemplo do Despacho Presidencial n.º 239/22, de 7 de Outubro passado, através do qual João Lourenço atribuiu à Omatapalo, sem concurso público, a concepção e construção do Pavilhão Multiusos do Cuanza-Norte, por 23,8 milhões de dólares. Não há actividade desportiva nesta província que justifique tal obra, muito menos que se lhe atribua prioridade.
Esse mesmo valor serviria para construir e reabilitar as 23 unidades militares consideradas prioritárias e constantes do modesto plano do EMGFAA, com um valor total de 11 mil milhões e 720 milhões de kwanzas (23 milhões de dólares ao câmbio actual).
Este projecto demonstra que, afinal, para além da retórica, não se aprendeu nada com os erros do passado. Volta-se a apostar num modelo de crescimento falso, assente na subida do preço do petróleo que financia obras faraónicas de construção que não servem para nada a não ser para engordar lucros de firmas estrangeiras e de amigos, não deixando mais do que infra-estruturas vazias e negociatas entre as elites. Será uma farsa em forma de repetição da história. Havia uma obrigação patriótica de proceder melhor.
Como é óbvio, “cimeiras ao mais alto nível” requerem, a priori, um elaborado nível de segurança. Quem garantirá a segurança dessas cimeiras? Os dirigentes engravatados? O que mais se pode dizer?
Os dividendos da paz parecem continuar a servir exclusivamente a classe dirigente e os interesses de grupos e estrangeiros por si escolhidos.
Mas é importante relembrar que tem sido o sector de Defesa e Segurança a garantir, como guarda-costas, a tranquilidade dos dirigentes, que por sua vez continuam a agir como se os poderes que lhes são atribuídos fossem infinitos e os seus abusos, a lei.
As eleições de Agosto passado foram uma clara indicação da extrema mudança de atitudes no seio das forças de Defesa e Segurança, habitualmente conservadoras e leais ao poder. De acordo com recolhas empíricas, essas forças terão mostrado, com o seu voto, o cartão vermelho ao seu próprio comandante-chefe.
A desmoralização sem freio das forças de Defesa e Segurança é uma ameaça real que requer uma reflexão profunda e responsável. Para já, concita uma pergunta óbvia: como se pode governar com autoritarismo ou de forma surda, com arrogância, sem a confiança e a lealdade das forças de Defesa e Segurança? Ou, em alternativa, é possível governar de forma democrática e garantir a paz social espezinhando e destruindo a capacidade funcional das Forças Armadas?
Cabe ao chefe do Governo, o presidente da República e comandante-chefe das FAA, tomar medidas emergenciais para conferir alguma dignidade aos defensores da pátria e da soberania nacional. Como dizem os cidadãos, “o país não está bom”.
O mundo enfrenta hoje dinâmicas complexas no domínio da segurança internacional, que requerem exércitos modernos e preparados para os desafios.
O caso mais patente de gravidade extrema encontra-se mesmo às portas de Angola. No Leste da vizinha República Democrática do Congo (RDC) está em curso uma verdadeira guerra assimétrica entre um grupo autodenominado M23 e as Forças Armadas da RDC. Trata-se, para muitos especialistas, de uma guerra por procuração entre o Ruanda e a RDC, que mais cedo ou mais tarde envolverá o Uganda. Tal guerra tem como objectivo o controlo de zonas mineiras ligadas aos produtos do futuro: o coltan e o cobalto. À partida, não se trata de um conflito meramente étnico ou de choque de personalidades, mas de algo mais grave: a exploração dos recursos naturais da RDC com o derramamento de sangue congolês, para que este povo nem sequer pense em beneficiar das suas riquezas, mas apenas em sobreviver.
Desde a sua independência, em 1960, as agitações na RDC têm sempre reflexo em Angola e vice-versa. Como é evidente, o perigo espreita e as FAA poderão ser chamadas a uma forte intervenção, seja de pacificação interna na RDC, seja de protecção activa da fronteira nor-nordeste do país. De tão penoso, o estado actual das FAA é difícil de admitir. Mas não há dúvida de que é essencial ter um exército com soldados motivados, bem equipados, prontos e disponíveis.
Tal é a falta de sentido do que se passa em Angola que a melhor descrição da situação vem da boca da juventude: “O bombó is molhed.”
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