O jornalista e activista angolano Rafael Marques pediu hoje à justiça angolana que instaure um processo contra a presidente do Tribunal de Contas (TdC) para investigar despesas suspeitas, no valor de milhões de dólares.
Na carta endereçada ao Procurador-Geral da República, Helder Pitta Groz, o jornalista sublinha que “o tempo é de mudança” e solicita a “devida fiscalização” aos atos de Exalgina Gambôa, que denunciou no portal “Maka Angola” em Junho.
Na altura, Rafael Marques de Morais revelou que as despesas da juíza, suportadas pelo erário público através do Cofre Privativo do Tribunal de Contas ascenderiam a cerca de 4 milhões de dólares e visavam o apetrechamento da residência, com mobílias adquiridas em duas empresas.
Após a denúncia, nem a PGR nem o Tribunal de Contas se pronunciaram, tendo esta entidade informado apenas que as despesas realizadas pelo Tribunal constam dos relatórios anuais aprovados pelo plenário e são realizadas com base nos direitos e regalias dos magistrados previstos na lei.
Exalgina Gambôa foi também alvo de notícias, veiculadas inicialmente pelo Africa Monitor e mais tarde pelo Correio Angolense, que envolviam o congelamento de contas de um filho seu, em Portugal, supostamente constituídas com valores provenientes da conta do Tribunal de Contas domiciliada no banco Yetu.
Rafael Marques de Morais voltou ao tema sublinhando ter documentos que provam que a juíza, além dos gastos em mobília e reabilitação de uma casa num “luxuoso” condomínio que lhe foi entregue a estrear e que foram superiores ao valor do imóvel (3,5 milhões de dólares) adquiriu também uma residência para a sua adjunta, no valor de 437 mil dólares.
Aponta ainda um “mistério”, aludindo ao pagamento de 526 milhões de kwanzas (1,2 milhões de dólares ao câmbio atual) para a “aparente aquisição de nada”, verba que saiu do Cofre Privativo para a Urbanização Nova Vida.
Este projeto, acrescenta-se na carta, pertence á empresa Imogestin, cujo presidente é o ex-marido de Exalgina Gambôa, Rui Cruz.
Dirigindo-se ao procurador-geral, o ativista angolano salienta que se trata de “um absurdo malbaratar de verbas” que deveriam ser devolvidas ao Cofre do TdC “especialmente num tempo atroz como este” em que muitos cidadãos “são vistos todos os dias a vasculhar o lixo para se alimentarem”.
“Trata-se de uma situação inaceitável, absolutamente imoral”, reforçou Rafael Marques de Morais, apelando a que se atue “imediatamente para acabar com todas as utilizações indevidas de fundos públicos” e que se instaure “o devido processo legal com vista à averiguação dos factos que parecem suspeitos”.
Numa outra carta, dirigida à presidente da Assembleia Nacional [reproduzida abaixo], o jornalista chama também a atenção de Carolina Cerqueira e dos deputados para a situação, no sentido de o parlamento exercer o seu papel de fiscalizador da atividade do Tribunal de Contas, “a fim da sua urgente resolução e responsabilização administrativa, política e criminal”.
Carta dirigida à presidente da Assembleia Nacional
A Sua Excelência
Presidente da Assembleia Nacional
Dra. Carolina Cerqueira
Assunto: Fiscalização e responsabilização dos actos da Presidente do Tribunal de Contas
Excelência,
Este é um tempo de mudança e um novo ciclo acaba de se iniciar. Se há algo em que todos estaremos de acordo é neste pressuposto.
Por essa razão que lhe envio esta carta sobre a necessidade de o órgão soberano a que Vossa Excelência preside proceder à devida fiscalização dos actos da Presidente do Tribunal de Contas, Dra. Exalgina Gambôa, de modo a obter conclusões objectivas e suscitar a necessária responsabilização administrativa, política e criminal.
Na verdade, legalmente, compete à Assembleia Nacional fiscalizar a actividade do Tribunal de Contas em relação a assuntos de índole financeira, orçamental, contabilística e patrimonial, nos termos do artigo 37.º, nº 5 da Lei Orgânica e de Processo do Tribunal de Contas. Trata-se de um poder indeclinável da Assembleia Nacional com vista a assegurar o respeito da legalidade no controlo das contas públicas.
Além do mais, e acima dos preceitos legislativos, o fim último do exercício da governação e das funções da Assembleia Nacional reside na prossecução do bem comum.
O bem comum é o conceito abrangente que deve orientar o raciocínio e a prática de todos os membros e órgãos do Estado. Para alcançar o bem comum, os cidadãos devem, também, manter uma relação “política” ou “cívica” uns com os outros, para que as instituições promovam certos interesses partilhados, como a liberdade, a prosperidade e a tranquilidade. Juntos, as instituições, os cidadãos e os interesses relevantes constituem o bem comum, o qual deve orientar a acção política.
É com este fundamento que se incita Vossa Excelência a tomar ou fazer tomar as iniciativas adequadas com vista ao controlo, à fiscalização e à responsabilização dos actos da Presidente do Tribunal de Contas.
Relembre-se que, em 2020, o Executivo procedeu à aquisição de uma residência no exclusivo e luxuoso Condomínio Malunga, no Talatona, Luanda, pela quantia de 3,5 milhões de dólares, cujo destinatário foi a veneranda juíza Exalgina Gambôa.
Provas documentais em minha posse demonstram que a juíza pagou 212,8 milhões de kwanzas à empresa Sholin Construções Lda., no dia 5 de Agosto de 2021. Este pagamento, com origem no Cofre Privativo do Tribunal de Contas, destinou-se à reabilitação da sua residência no Condomínio Malunga. Ao câmbio actual, trata-se de meio milhão de dólares para a reabilitação de uma residência de alto padrão de luxo, que lhe fora entregue nova, a estrear.
Além disso, o Cofre Privativo do Tribunal de Contas pagou à empresa Annus Mirabilis Decoração, nos dias 26 de Março, 30 de Julho e 17 de Dezembro de 2021, um total de 1,426 mil milhões de kwanzas. O apetrechamento da residência no Malunga, ao câmbio actual, custou, portanto, 3,3 milhões de dólares.
Exalgina Gambôa também recorreu aos serviços da empresa J.A.V., de João Justino António, para a aquisição de mais mobiliário para uso particular. O Cofre Privativo de Justiça desembolsou, para esse efeito, a 30 de Julho de 2021, a quantia de 199 milhões de kwanzas. Ao câmbio actual, o valor ascende a 461 mil dólares.
E assim chega-se a um apuramento de contas que diz que os gastos de Exalgina Gambôa com mobiliário foram superiores ao valor de aquisição da luxuosa vivenda de quatro suítes.
A Presidente do Tribunal de Contas preocupa-se também com a “dignificação” da sua Adjunta. Com recurso ao mesmo Cofre Privativo, Exalgina Gambôa adquiriu, para a vice-presidente, Domingas Alexandre Garcia, uma residência no Condomínio Dalm, no Talatona, pela módica quantia de 189 milhões de kwanzas. O valor, pago em duas tranches ao empresário Amil Ali Bachu, nos dias 26 de Abril e 7 de Junho de 2021, equivale a 437 mil dólares ao câmbio actual (para mais informação sobre estes factos, consultar artigos aqui e aqui).
Repare-se que o dispêndio em mobílias “Mirabilis” para a casa da veneranda juíza Exalgina Gambôa é seis vezes superior ao valor de compra da residência da sua Adjunta Domingas Garcia. Esta residência, por sua vez, teve um custo quase idêntico ao dos outros acessórios e mobílias adquiridos à J.A.V.
Fonte governamental indica que a juíza solicitou ao Ministério das Finanças o montante de dois mil milhões de kwanzas para mobilar a sua residência. E terá sido perante a recusa ministerial que a juíza decidiu recorrer ao Cofre Privativo do Tribunal de Contas.
No meio destas transacções, há um mistério. Assinala-se um pagamento de 526 milhões de kwanzas, efectuado a 10 de Fevereiro de 2021 pelo Cofre Privativo do Tribunal de Contas à Urbanização Nova Vida, para uma aparente aquisição de nada. Esse valor, ao câmbio actual, equivale a 1,217 milhões de dólares. A Urbanização Nova Vida é um projecto da empresa Imogestin, cujo presidente do Conselho de Administração é o ex-marido de Exalgina Gambôa, Rui Cruz.
A resposta do Tribunal em relação aos factos até aqui enunciados foi que todos se enquadravam nos poderes legais da Presidente e haviam sido aprovados atempadamente pelos colegas. Em concreto, o Gabinete de Comunicação e Imagem do Tribunal respondeu a informar que as “despesas realizadas por este Tribunal constam dos Relatórios Anuais elaborados e aprovados pelo Plenário do Tribunal de Contas, nos termos do previsto na Lei n.º 13/10, de 9 de Julho, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 19/19, de 14 de Agosto. As despesas de capital são realizadas com base nos direitos e regalias dos Magistrados, conforme previsto na Lei n.º 7//94, de 29 de Abril, Estatuto dos Magistrados Judiciais e do Ministério Público”.
Não se considera esta resposta nem suficiente, nem cabal. Aliás, ela mereceu uma nota posterior em que uma juíza do próprio Tribunal de Contas, Elisa Rangel, expressou o seu desacordo com os procedimentos, manifestando a convicção de que se estava perante uma ilicitude (mais informações aqui).
Senhora Presidente,
Estes factos são tanto mais gravosos quanto partiram da mais alta responsável pela entidade que tem de controlar as contas públicas do País. Coloca-se a velha questão: Quis custodiet ipsos custodes? (Quem guarda os guardas?). Como pode o Tribunal de Contas cumprir o seu papel — tão importante para o País e os cidadãos — de salvaguarda do correcto dispêndio de dinheiros públicos, quando a sua Presidente dá evidentes sinais de ser perdulária e de despender verbas públicas de forma pouco transparente e em benefício próprio?
Numa altura em que se fala tanto de recuperação de activos, temos aqui um absurdo malbaratar de verbas que, no mínimo, deviam ser devolvidas ao Cofre do Tribunal de Contas pela sua Presidente, especialmente num tempo atroz como este, em que muitos dos nossos concidadãos são vistos todos os dias a vasculhar o lixo para se alimentarem nos contentores urbanos por causa da fome. Trata-se de uma situação inaceitável, absolutamente imoral: é preciso actuar imediatamente para acabar com todas as utilizações indevidas de fundos públicos, designadamente, esta.
São estas a questões para as quais convocamos a atenção de Vossa Excelência, bem como a dos/das Senhores/as Deputados/as, no sentido de exigir a prestação de contas ao Parlamento, no âmbito do seu papel de fiscalizador da actividade do Tribunal de Contas, a fim da sua urgente resolução e responsabilização administrativa, política e criminal. Por outro lado, exige-se que o Parlamento inste o Tribunal de Contas ao esclarecimento cabal da situação.
Vive-se um tempo de exigência e de mudança, que não mais se compadece com encobrimentos ou afirmações retóricas vazias, pelo que é dever de todos os cidadãos, e ainda mais dos representantes do povo, tomar conta dos dinheiros públicos e criar uma cultura de exigência e de competência. Para isso, conta-se com Vossa Excelência.
Luanda, 14 de Outubro de 2022
Rafael Marques de Morais
(cidadão angolano) Junta-se em anexo: documentos que fundamentam as alegações aqui apresentadas
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