O Serviço Nacional de Recuperação de Activos (SENRA), da PGR, tem difundido números extraordinários, na ordem dos 21 mil milhões de dólares, referentes aos bens por si recuperados no âmbito da luta contra a corrupção.
Não há como confirmar tais números, devido à opacidade da informação prestada ao público. Pouco ou nada se fala do destino dado a muitos desses bens, que aguardam por decisão judicial, nem de como alguns acabam saqueados e vandalizados.
Como temos referido várias vezes no Maka Angola, deveria ser criado um mecanismo público de informação sobre o estado dos activos envolvidos em processos de recuperação. Quais foram intervencionados pelo Estado e qual a natureza jurídica dessa intervenção? Qual o valor atribuído aos activos, como serão geridos e que destino terão? A falta de transparência em relação a estes aspectos pode conduzir a perdas astronómicas para o Estado, quando se pretendia o contrário. De nada serve recuperar activos se estes forem destruídos, em vez de enriquecerem o património do Estado.
Entretanto, o saque e o vandalismo sobre activos recuperados parecem acumular-se. Tal é o caso de um moderno centro de treinos construído para um clube desportivo angolano. Confiscado pelo SENRA em excelentes condições, o centro foi vandalizado logo a seguir. Agora, o seu fiel depositário, a Federação Angolana de Futebol (FAF), vê-se obrigada a estender as mãos à FIFA para pedir uma doação financeira que lhe permita reabilitar esta infra-estrutura.
Trata-se do Complexo Desportivo e de Treino do Benfica de Luanda, uma obra avaliada em 21 milhões de dólares, patrocinada pelo ex-director do Instituto Nacional de Estradas de Angola (INEA), Joaquim Sebastião, na qualidade de presidente do referido clube desportivo.
A infra-estrutura foi erguida pela Manuel Couto Alves (MCA), uma empresa de construção que beneficiou de muitos contratos de estradas. Comporta um edifício de alojamento temporário de atletas, com 14 quartos, ginásio, refeitório, salas de reunião e de lazer, piscina, lavandaria e armazém. O centro está dotado de três campos de futebol de relvado natural, sintético e de areia e demais infra-estruturas de apoio, incluindo torres de iluminação, arruamento e jardinagem.
A 31 de Janeiro de 2019, as autoridades judiciais detiveram Joaquim Sebastião por suspeita de crimes de peculato, associação criminosa e branqueamento de capitais enquanto geriu o INEA, de 2004 a 2010. Para garantir a sua libertação condicional, após seis meses de cadeia, Joaquim Sebastião redigiu “voluntariamente” uma lista com o seu património pessoal, avaliado em 54 milhões de dólares, que entregou ao SENRA, incluindo o Centro de Estágio do Benfica. Joaquim Sebastião será julgado, em data ainda não determinada, na 7ª Secção da Sala Criminal da Comarca de Luanda, pelo juiz Adélio Chocolate.
Não se percebe qual é o fundamento legal para trocar entregas de listas de bens pela liberdade provisória. Estas iniciativas poderão, no futuro, originar responsabilidades jurídicas a quem os praticou. Conforme o jurista Rui Verde tem vindo a repetir no Maka Angola, deveria ser criado “um sistema de justiça negociada semelhante ao Brasil ou Estados Unidos com amparo legal”. Caso contrário, refere, “temos uma prática que não tem apoio na lei, com a grande probabilidade de originar confusão mais adiante”.
Tão logo o SENRA selou o referido centro, procedeu-se ao seu saque. Depois de canibalizadas as instalações (conforme demonstrado em vídeo a que o Maka Angola teve acesso), as autoridades judiciais entregaram-no à Federação Angolana de Futebol (FAF), que nomearam sua fiel depositária, com direito de utilização.
“A FAF recebeu o centro há um ano e meio. Todo o mobiliário dos quartos tinha sido roubado, assim como todo o equipamento informático. Quase todo o equipamento, incluindo o da sala de refeições, da cozinha e dos gabinetes de trabalho, foi açambarcado. Até a piscina foi danificada”, lamenta um dirigente da FAF, sob anonimato. De acordo com o interlocutor, apenas o ginásio foi poupado. “O equipamento do ginásio é muito bom, mas como os aparelhos são muito pesados, não os conseguiram roubar.”
Em vez de benefício, a FAF reclama ter recebido um custo insuportável. “Temos seis a oito guardas. Pagamos mais de dois milhões de kwanzas por mês pela segurança do centro. O que as autoridades nos entregaram é mais um custo. Não temos benefício, porque não temos como usar o centro nas condições actuais”, diz a FAF.
“Não temos capacidade financeira para gerir o centro, nem sequer para os custos de energia e água. O centro não tem nem água nem energia da rede pública”, enfatiza a fonte da FAF. A infra-estrutura é alimentada por tanques de reserva de água e dois conjuntos de geradores de energia, tem um consumo de 8 a 10 cisternas de água e 10 mil litros de combustível de dois em dois meses, de acordo com documentos obtidos pelo Maka Angola. “Tivemos um encontro com o ministro da Energia e Águas para que o Estado possa incluir o centro na rede pública de energia e água, mas sem sucesso”, explica o interlocutor.
Segundo as contas da FAF, o custo de recuperação do centro, para pô-lo a funcionar, “ultrapassa os três milhões de dólares. Não temos esse dinheiro para investir na reabilitação do centro, sobre o qual nem sequer temos um título definitivo de posse, mas apenas um documento do SENRA em como somos o fiel depositário”.
“Solicitámos apoio financeiro à FIFA, no valor de um milhão de dólares, para recuperar o local de modo que possamos lá treinar as selecções dos escalões mais jovens”, revela o entrevistado, para quem “tem de haver um procedimento mais sério na recuperação de activos e um estudo aprofundado para garantir que o património sirva para o bem do Estado”.
Por sua vez, o advogado de Joaquim Sebastião, Benja Satula, explica que a directora do SENRA, Eduarda Rodrigues, “tem responsabilidades sobre o estado actual do centro”. “Na altura, pedimos apenas autorização para que mantivéssemos a segurança do centro, por conta própria, até haver decisão judicial para preservar o património, mas ela recusou. O propósito era só prender e não se ativeram às consequências da destruição do património entregue”, desabafa o advogado.
De forma oficiosa, a PGR reconheceu recentemente, ao Maka Angola, a urgência de um esclarecimento público sobre os bens apreendidos e entregues à gestão do Instituto de Gestão de Activos e Participações do Estado (IGAPE), do Cofre Geral de Justiça, tutelado pelo Ministério da Justiça e Direitos Humanos e outras entidades públicas.
Há, nestas recuperações de activos, uma grande confusão entre apreensão e apropriação. Segundo Rui Verde, deve haver rigor na distinção entre apreensão e apropriação. “A apreensão não faz mudar a propriedade, é apenas um ‘congelamento’ que impede o proprietário de vender ou onerar o activo, enquanto a apropriação implica uma transacção, em que o proprietário entrega o bem ao Estado, que fica seu dono efectivo e real”, explica.
A confusão parece dominar o processo de recuperação de activos. Tem-se apreendido e afastado os proprietários como se de uma apropriação se tratasse.
Para o jurista, “a mudança de propriedade só se dá, geralmente, depois de os processos transitarem em julgado, isto é, após chegarem ao fim, e em casos extremos previstos na nova lei da apropriação pública”.
Para Rui Verde, “a regra geral é que se faz uma apreensão (congelamento). O erro tem sido não manter o proprietário como fiel depositário, mas sim entregar tudo a entidades que não têm meios para gerir”. Existe o perigo real de transformar os bens apreendidos num monte de ruínas, e é preciso arrepiar caminho enquanto é tempo.
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