Vai hoje ser emitida mais uma entrevista de Isabel dos Santos, desta vez à CNN Portugal/TVI, na sequência da anterior que concedeu à Deutsche Welle(DW), na qual se defendeu publicamente do aludido mandado de captura emitido pela Procuradoria-Geral da República angolana (PGR) e internacionalmente distribuído através da Interpol. O espaço mediático conferido a Isabel dos Santos e a confusão que ela propaga resultam, em parte, da desastrosa comunicação do governo de João Lourenço, em particular da PGR, que deveria ter feito um anúncio formal público.
Isabel dos Santos faz muito bem em reagir publicamente. É seu direito. Contudo, a exposição pública implica o exercício do contraditório. Não basta falar em monólogos. É fundamental contrapor, uma vez que a referida entrevista tem trechos altamente ofensivos para as vítimas das violações dos direitos humanos em Angola.
Não é crime um cidadão ou uma cidadã ignorar os horrores da governação do seu país, durante toda uma vida, até entrar em conflito com a lei. Já é inaceitável que alguém que se apresente como potencial candidata a presidente da República, cargo cujos poderes constitucionais permitem decidir sobre a vida e a morte dos angolanos, tenha uma abordagem exclusivamente narcisista da realidade e do sistema de justiça do seu país, como se Angola fosse uma bola, com todos lá dentro, para pontapear a seu bel-prazer. Por isso, merece resposta.
Em sua defesa, Isabel dos Santos disse:
“Infelizmente, e isso é uma coisa que me põe triste, o meu país não tem justiça. O nosso país não é um Estado democrático de direito. É um país em que as leis não são cumpridas. O sistema judicial em Angola não é independente. Antes de isto me ter acontecido, eu não tinha noção da gravidade deste problema, mas hoje em dia tenho. Hoje em dia sei que em Angola se violam os direitos humanos. Confesso que, antes disto, eu também não sabia.”
A família dos Santos, pontificada por Isabel e com Manuel Vicente como único concorrente equiparável, foi a principal beneficiária da guerra, da paz, da falta de justiça em Angola, do incumprimento das leis, da falta de independência do poder judicial e da violação dos direitos humanos. Mas a ex-presidente do Conselho de Administração da Sonangol diz que “não tinha noção” da gravidade das injustiças e não sabia nada da violação dos direitos humanos. O rol de injustiças, de abusos de poder e de cultura de intrigas destruíram o tecido social angolano, ao ponto de os cidadãos permitirem sem reagir, salvo alguns queixumes, a pilhagem desabrida do país. E continuam a facilitar o seu saque.
Isabel dos Santos quer apagar da memória colectiva, com truques de ilusionismo, os 38 anos de poder do seu pai, José Eduardo dos Santos (JES). Da parte da sociedade, parece haver maior sentimento de respeito ao eterno repouso do ex-presidente do que da sua própria filha. O que sofreu com a violação dos seus “direitos”, para além da perda de alguns bens materiais cujas origens os angolanos conhecem? E o que a maioria dos angolanos perdeu e perde com a ganância desmedida de dirigentes passados e actuais?
É simplesmente inaceitável anunciar à imprensa livre estrangeira que não tinha noção dos abusos na era do seu pai. Até há bem pouco tempo, Isabel dos Santos era a dona da ZAP TV em Angola, que, no governo do seu pai, nunca moveu uma palha para garantir a liberdade de imprensa nos seus espaços – antes pelo contrário. Se calhar também não sabia. Serão fantasmas os desgraçados da Areia Branca, na Chicala, que foram violentamente desalojados e retidos ao longo de vários dias pela Unidade de Guarda Presidencial, para que cedessem terrenos para os projectos imobiliários de Isabel dos Santos?
Milhões de angolanos ostentam marcas profundas da violação dos seus direitos humanos e das injustiças do poder, mas nunca tiveram a possibilidade de ser acompanhados ao aeroporto e bazar, como aconteceu com Isabel dos Santos ao tomar conhecimento da notificação da PGR a 17 de Julho de 2018.
De que perseguição sofreu Isabel dos Santos? Uma perseguição que lhe permitiu furtar-se a uma notificação oficial e embarcar para um exílio de luxo no mesmo dia?
Cada um conta a sua história ou estória de perseguição. Eu conto a minha.
Passei 19 anos a enfrentar processos judiciais, incluindo os movidos por JES e por um total de dez poderosos generais. Arrepiei-me com dois atentados à minha vida, incluindo um na África do Sul que, conforme vim a saber mais tarde, foi abortado no último minuto pelas mesmas ordens superiores que o haviam ordenado. Deveria eu ter agradecido a magnanimidade?
Estive preso e “retido” várias vezes e até fui brutalmente espancado no quartel-general da Polícia de Intervenção Rápida (PIR), com direito à filmagem da selvajaria. Tive o passaporte confiscado no aeroporto por mais de dez vezes e um rol indescritível de perseguições e de vigilância física a todo o tempo. Isso incluiu o parqueamento permanente, numa casa vizinha à minha, de uma minivan montada com sofisticados equipamentos de escuta (24h/24h), numa operação coordenada pelo israelita Haim Taib, cujas empresas continuam a beneficiar de grandes contratos com o actual governo.
Em vez de lamentar o “azar” e fugir do país, dediquei-me a defender os direitos dos que não tinham voz e a enfrentar os poderosos. Excepto por razões de estudo, nunca vivi fora de Angola. Acalentei a esperança de que um dia os angolanos acordariam e compreenderiam que têm sido sempre divididos, desde o período da escravatura, para permitir que outros – uma pequena elite – beneficiassem do seu sangue e suor. De que veriam como têm sido derrotados pelas intrigas que abortam qualquer tentativa de solidariedade colectiva e qualquer aposta no conhecimento para o bem comum, para a construção de uma Angola onde impere a justiça, o humanismo e o desenvolvimento humano.
O calvário começou a 16 de Abril de 1999. Nesse dia fui interrogado e maltratado na então DNIC por ter publicado um artigo de opinião – “Carne para Canhão” – no Folha 8. No texto, lamentava como as mães angolanas pobres tinham sido transformadas em parideiras de carne para canhão, numa guerra insensata, em que nem sequer tinham o direito a receber uma carta a informá-las sobre as mortes dos seus filhos. Até o acto de falar do infortúnio das mães angolanas era considerado crime. Hoje, os soldados, sem eira nem beira, são simplesmente tratados como seres sub-humanos, com direito a nada, excepto ordens.
Meses depois, a 16 de Outubro de 1999, fui detido por ter chamado JES de “ditador e corrupto”. Para que as novas gerações tenham uma ideia, na altura, fui colocado numa cela da cadeia do Laboratório Central de Criminalística, paredes-meias com o Cemitério da Santana, em Luanda. Essa cadeia não faz parte das que são controladas pelos Serviços Prisionais. Rotularam-me de prisioneiro de guerra, da UNITA, sem direito a comida ou água, para que mais ninguém tivesse contacto comigo. Em vez de pedir comida, aproveitei para reverter a situação a meu favor, declarando uma greve de fome que durou 14 dias. Tive de aprender, na solitária sem janela nem luz, a dormir coberto de baratas, que pareciam sair interminavelmente do buraco que servia de pia. Não me podia mexer muito, para não as esmagar e ficar empestado com o cheiro dos seus cadáveres.
Foram precisos 11 dias de campanhas internacionais para que eu fosse transferido para a Cadeia de Viana. Foi nesse estabelecimento que testemunhei, por exemplo, o horror da chamada “cela dos judeus”, onde praticamente todos os dias morria um recluso esquelético. O corpo ficava exposto o dia todo, num canto onde outros reclusos jogavam cartas ao intervalo. Em vez de pensar na minha falta de liberdade, atarefei-me a recolher dados sobre o que ali se passava e denunciei inúmeras situações, incluindo excesso de prisão preventiva em mais de sete anos. Em parte devido a esse trabalho, mais de mil reclusos foram libertados de acordo com a lei, e a cadeia de Viana teve de encerrar para obras por alguns anos.
Só a 6 de Julho de 2018, depois de 18 anos, me vi finalmente livre de processos judiciais, com a absolvição no último julgamento de que fui alvo, numa acção movida pelo malfadado general João Maria de Sousa, nas suas vestes de procurador-geral da República.
Em Dezembro desse mesmo ano, publiquei um relatório detalhado sobre as execuções sumárias nos municípios de Cacuaco e Viana, incluindo de muitos cidadãos completamente inocentes. Trata-se do “Campo da Morte: Relatório sobre Execuções Sumárias em Luanda, 2016-2017”.
“O que eu hoje enfrento é uma perseguição política”, diz Isabel dos Santos na entrevista à DW.
Perseguição política é o que a maioria dos angolanos sofre diariamente por causa da herança deixada pelo seu pai, que inclui a escolha pessoal de João Lourenço como seu sucessor. Foi a última vingança de JES contra o povo que nunca amou. Não há perseguições políticas quando se passeia livremente pelas praias mais badaladas do mundo e se mostram iates e benefícios inatingíveis para a esmagadora maioria dos angolanos.
Enquanto teve todo o poder de princesa, Isabel dos Santos tudo fez para ser bilionária. Em contrapartida, o que fez para demonstrar o seu amor, ou pelo menos carinho, pelos angolanos? Durante vários anos, a filha do antigo chefe de Estado presidiu à Cruz Vermelha de Angola (CVA), uma instituição de utilidade pública que conseguiu deixar à beira da destruição, conforme denunciámos em devido tempo.
Poderia ter usado as suas eventuais qualidades de empresária e as suas ligações políticas para transformar a CVA na maior instituição de utilidade pública, de socorro aos mais carentes. Porém, fez precisamente o contrário. Como é aliás sabido, usou a CVA para fugir ao fisco na importação de bens para as suas empresas.
Nos últimos anos, temos estado na linha da frente na abordagem pública das questões do sistema judicial, por isso conhecemos bem como ele funciona. Este sistema é ainda um resquício do tempo do pai de Isabel. Somos nós e muitos outros que lutamos pela reforma do sistema judicial. Não é Isabel dos Santos, que sempre beneficiou dele. Isabel dos Santos deve enfrentar o sistema judicial angolano, como todos os angolanos. Talvez depois dessa experiência possa perceber o que fez, e sobretudo, o que não fez pela melhoria de vida em Angola.
Com toda a humildade e sentido de responsabilidade, temos ultrapassado barreiras e estabelecido relações de conciliação, entendimento e até de amizade com antigos oponentes, com cidadãos interessados numa luta construtiva para a realização colectiva do Estado de direito e democrático.
Da mesma forma que os angolanos souberam reconciliar-se depois de terminada a guerra, também existe uma fórmula para se acabar com a actual guerra da truculência e de substituição do mal pelo mal. O futuro de Angola depende de todos e não de João Lourenço ou de Isabel dos Santos.
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